O mundo não para quando decidimos morar fora

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu” é o que cantarolo enquanto aguo três mudas de plantas compradas no supermercado. É o primeiro dia de sol no Porto em duas semanas e sinto aquele aperto no peito, tão meu conhecido nos últimos anos.

Instintivamente, lembro da casa com terraço em que morei em Teresina, do cheiro reconfortante de água saindo da mangueira e encharcando o chão cimentado e da preguiça adolescente que eu tinha de cumprir as tarefas deixadas pela minha mãe. Não morri, mas parti e o mundo continuou a girar. A vida não para quando vamos embora. Nem a nossa, nem a dos outros.

Há uns dias, “reencontrei” os meus amigos da universidade no Telegram. Alguns já não moram mais na mesma cidade, mas sou a que está fisicamente mais longe. Entre partilhas, piadas e desabafos, fui me dando conta que os cerca de 6.000 quilômetros que nos separam são reais. Eles conheceram outras pessoas, têm novos amigos, casaram, mudaram de emprego, frustraram-se com o rumo das coisas e eu não estava lá. Meu irmão fez 18 anos na semana passada, entrou na universidade, minha mãe concluiu a sua suada graduação em Psicologia e mudou de cabelo várias vezes, meu pai estreou três espetáculos e eu não estava lá.

Eu estava aqui.

Do outro lado da linha, eu estava aqui. À distância de um email, mensagem de Whatsapp, Facebook ou Instagram, mas a 6 mil quilômetros. Eu estava aqui.

E estar aqui não é viver com saudade: é viver a saudade, é ser a saudade. É sentir uma certa falta até do caos, de uma casa cheia de gente barulhenta e daquela parte das carnes no Mercado do Mafuá em que eu nunca pisava. Pedir a benção aos meus avós e esperar ouvir um “Deus lhe abençoe” ou “Deus lhe faça feliz”, antes com tanta ligeireza, passou a ter um peso tão assustadoramente esmagador que fico com os olhos marejados.

Eu que estou aqui penso todos os dias na perda, na morte e na vida, em quem ou no que não vai estar mais lá quando eu for. Quantos mais casarões terão sido convertidos em estacionamentos? Quantas ruas terão mudando de sentido? Quantas caras eu vou reconhecer, quantas eu já não vou mais ver?

Não fui embora sem olhar para trás. Não deixei tudo. Não trouxe tudo. Não estaria completa lá. Não estou completa aqui. Talvez até esteja, talvez sempre estive porque a completude é relativa. Aqui, daqui, estou sem os “meus”, mas não estou sozinha.

Tive duas filhas que 97% da minha família não conhece pessoalmente. A mais velha já vai guardando nomes, informações. Vemos juntas fotografias de uma história que também é dela, conto-lhe sobre lugares, fatos, pessoas. Gerir essa memória afetiva acaba por ser também uma grande responsabilidade: o primeiro vislumbre de Brasil que elas terão passa por mim.

Não existe qualquer arrependimento. A decisão de mudar de país foi provavelmente a mais drástica, mas também a mais natural que já tomei. O Porto é o meu lar, um dos meus lugares no mundo, o meu abraço. No entanto, nos dias quentes de verão, o cheiro de rio ao fim da tarde leva-me para a beira do Parnaíba, para a Matinha, para a Avenida Maranhão. Leva-me e traz-me de volta para mim, que é onde eu devo estar.

Este conteúdo é de total responsabilidade da autora da coluna Uma casa portuguesa, tem certeza?

 

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